Informe
Fiquei sabendo, por um conhecido meu, que no Rio de Janeiro um policial militar acordou hoje em surto. O cara foi um dos homens que participou do massacre de ontem, a princípio empolgado ao se saber alistado para a missão, e manteve a empolgação quando se paramentou e sentiu o peso do colete, do equipamento sobre seu corpo; tremeu um pouco as mãos, mas estava convencido de que era a adrenalina, ao empunhar o fuzil; fraquejou feio ao subir no camburão, tonteou. Na zona de guerra, já se perguntava que diabos fazia lá e quis se escafeder, voltar para casa, deitar sob a mantinha amarela que tem há muitos anos, tomar chocolate, assistir a qualquer besteira. Será que poderia? Não dava, alguém lhe puxaria pelo uniforme. Pela hesitação. E mesmo se conseguisse, hoje estaria frito. Hoje está frito. Conforme meu conhecido, não está sob a mantinha, está debaixo do armário, e o armário é rente ao chão. Não entendi essa parte. Parece que ontem quando já era tarde demais, quando se viu sem opção de fugir, saiu do transe em que se meteu por um minuto quando outro policial, salvo engano da mesma patente, gritava-lhe ao todo, às gargalhadas.
— Sapeca-lhe, caralho!
Devia atirar na testa de um rapaz amarrado a uma árvore seca e quieta, na mata barulhenta ao fundo da favela. O rapaz tinha os olhos anuviados de ódio, um sentimento que a injustiça lhe impunha, mas não dizia palavra. Não era momento para convencimento, retórica, diálogo, e olha que ele e o policial falavam a mesma língua, aprendida no mesmo lugar, apesar de a diferença de prosódia, a escolha de vocabulário e umas inversões fazerem parecer que jamais poderiam se entender. Poderiam, sim. Não ali, não no teatro em que seus papéis foram predefinidos.
Nem todos estavam atados como o primeiro que ele matou. O segundo, por exemplo, estava ao chão, ou com as pernas quebradas ou com a coluna partida ao meio. Não andava nem sequer conseguia se arrastar; sei nem se tentava. Não se humilhava implorando por misericórdia, muito pelo contrário. Calava como se o pão que o diabo amassou não estivesse tão azedo, seco e duro de engolir. Engolia com um orgulho que nunca tinha experimentado em toda sua longa vida de dezesseis anos. A cara esfolava ao chão, o peito arranhava nos gravetos e na imundície, algum órgão lhe sangrava e deixava um rastro humano na serapilheira, e pela primeira vez desde que nascera pensou que a vida prestava, era boa e valia a pena, porque não acordaria no dia seguinte. Este foi seu último pensamento, antes de entre o maxilar e a orelha esquerda tomar um tirambaço do policial que hoje acordou em surto.
A família não sabe o que fazer com o policial, e agora odeia o Estado quase tanto quanto várias famílias do Complexo do Alemão. Também parte da família viveu pela Penha, pelos arredores, fez amizades, idealizou amores, nutriu desavenças, perdeu festas, planos, mundanidades. Alguns colegas de profissão pausam de hora em hora a comemoração, a preparação para qualquer nova ofensiva, e lamentam a condição em que caiu o policial; creem-no até certo ponto eficiente, porém insuficiente ao que o momento, segundo eles, exige.
— É hora de separar os homens dos moleques — conclui um, após silêncio mascado.
O policial militar e moleque, debaixo do armário não sei bem como, alguma hora vai cair em si, suponho, com ou sem medicamentos, com ou sem ajuda, ou vai dar um jeito de no limite tirar a própria vida. Por enquanto, na escuridão em que se meteu, tem à sua frente uma cabeça solta e virtual que não articula fala nem pode ouvir, porque sua orelha e seu maxilar estão estourados, ossada, cartilagem, vermelhidão à mostra; essa cabeça não tem rosto, aliás, porque o policial não a viu quando por cima e por trás lhe disparou a morte. Tem também à sua frente outra cabeça, esta com semblante, que lhe encara destemida; espera o fim, que agora nesse âmbito virtual não lhe vai chegar — eis a imortalidade: se encontra na lembrança, boa ou má, redimida ou danada, dos outros. E tem ainda à sua frente uma terceira cabeça, a barbada e redonda do governador, sombria e ilustre, oposta às duas outras, lustrosas pelo suor, pelo sangue ou tão-somente pelo brilho de serem as medalhas dadas ao participante. Ele que tenha peito para as ostentar. No Palácio da Guanabara ou do Pesadelo.
Isso foi tudo que meu conhecido me informou, lá do Rio.


que dia :(